27.1.09

 
O pedido


Visivelmente desconfortável no terno que com certeza vestia pela primeira vez. Desses comprados em liquidação. A mão, grudenta de sebenta, cumprimentou a minha efusivamente. Gesto arrematado pelos indefectíveis tapinhas com força nas costas; tentando mostrar saudade e alegria por me ver.

Perguntou se podia sentar-se com uma subserviência inimaginável em outros tempos. Disse que eu estava bem. Aparência muito melhor que a dele. Lembrou da época da faculdade. De como todas as garotas eram apaixonadas por ele. E só os livros gostavam de mim.

E o tempo passando.

Falou que sempre pensou em me ligar. Lamentar-se pela última briga. Agradecer-me pelas milhares de vezes que o ajudei. Desculpar-se por recusar a única coisa que lhe pedi.

E eu com milhões de projetos para tocar.

Elogiou meu sucesso.
Quis saber da Maria Alice.
Das crianças.
Do cachorro que sorria na foto.

(Será que o estoque de assunto tá acabando?)

Explicou que...

─ Cara, já que você sabe que vou negar mesmo, por que não pede logo???

20.1.09

 
Melhora


Ontem estava melhor. Surgiu até uma ligeira vontade de falar com alguém.

 
À Judas


Tem gente que agrega.
Tem gente que à grega.

 
Miséria


─ Precisava dar 11 tiros no infeliz?
─ Comigo não tem miséria.

12.1.09

 
O que você vai fazer da sua vida agora?


Mijos em quem a colocava no colo. Boletins ensanguentados de vermelho. Colas pegas até nas pregas. Expulsões constantes na escola. Relações precoces com garotos descamisados e sem tradição, família e propriedade. Fama de quem não sai da cama. Pílulas do dia seguinte tomadas quase todos os dias. Abortos a céu aberto. Namoros sem noivados, muito menos casamentos. Rolos que só a deixam mais enrolada. Cursinhos que nunca a colocaram em curso. Vestibulares fracassados, mesmo em faculdades malfaladas. Viagens pra fora da realidade e passagens por delegacias. Intercâmbios que só a fizeram crescer de lado. Estágios que pagam uma miséria e não cobrem seus gastos. Amigos perdidos por dívidas nunca pagas. Cheques sem fundo, sem medida e sem-vergonha. Noites sumidas com gente desencontrada. E o grande ápice: conseguir transformar uma droga de vida numa vida que é só droga.

─ O quê? Ah, tá. Você tem uma novidade. Vai, fala. Não! Espere eu sentar primeiro.

9.1.09

 
Minifato IV
(a realidade goleando a ficção)

O marido traído que dou o rim pra esposa, agora o quer de volta.
Mal sabia ela que, ao não perder a vida, ganharia um inimigo figadal.

7.1.09

 
Xadrez de olhar


O velho vira com raiva a última folha do jornal que lê pela terceira vez, olha para as 50 mesas vazias do clube e apaga o 12° cigarro do dia. As peças brancas do xadrez, à disposição para estimular um possível adversário, esperam há horas alguém surgir.

Do outro lado, na portaria de vidro feita para impedir o barulho (qual barulho se não há ninguém?), seu Virgílio vê a cena diária se repetindo. A mão que apóia a cabeça sente mais o peso do desânimo do que da cabeça.

E pensar que o clube fora tão diferente. Lotado, com filas de gente para jogar nos campeonatos que atraíam os melhores do Brasil e do mundo. Tantas histórias. Como a da mulata sargentelesca que arrumaram para tirar o sono de um russo na véspera da final. Hoje, nem as moscas vêm mais. A internet acabou com tudo.

Seu Vírgilio acena pro velho, que não retribui.

O velho pensa na vida (ou na falta dela).

Seu Vírgilio pisca e cochila.

O velho irrita-se mais.

Seu Vírgilio ronca.

O velho joga o rei no cinzeiro e se levanta.

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