31.8.10

 
Banquete na Nova Higienópolis


Pra eles, a sopa requentada no coração quente desses voluntários-otários é bem mais do que um banquete; mas pra nós é indigesto.

Querem acabar com nosso bairro. Tudo o que construímos aqui, seguindo os rígidos preceitos da tradição, da família e da propriedade, está em risco.

Santa Cecília não pode virar Infernal Cecília!

Não queremos ver a pobreza se avizinhar em filas que se ramificam pelos quarteirões e enterram o valor dos nossos imóveis.

Exigimos (sim, sr. prefeito, temos o direito) outro tipo de lavagem. Não a dessa sopa, mas uma lavagem moral e cívica que expulse esses desocupados da nossa vista. Que eles partam pras suas cracolândias, Itaqueras ou pro raio que os parta. Mas que partam daqui!

Nosso objetivo, sr. prefeito, é colaborar com seu governo. Transformar Santa Cecília num bairro de primeiro mundo.

Ao higienizar esses ratos com seus pratos rasos e prantos fundos, exterminaremos esse problema da cidade. E criaremos, com orgulho, a Nova Higienópolis.

25.8.10

 
O colecionador


─ Nossa, colocou todos na parede?
─ Sim, são meu maior orgulho.
─ Pôs nos quadros como se fossem diploma?
─ Cada um deles é um pedacinho de mim.
─ Mas não fica meio deprê de dormir num quarto forrado de exames?
─ Nada. É superprático. Quando quero consultá-los, é só virar a cabeça.
─ E precisa ficar olhando sempre?
─ Sempre, não. Só umas três vezes por dia.
─ Pra quê?
─ Pra ver como tô evoluindo.
─ Evoluindo???
─ É. Este aqui, por exemplo, olha que beleza: o primeiro de transaminase que fiz.
─ E daí?
─ É uma relíquia; na época não tinha o dobro do limite aceitável como hoje.
─ Sei...
─ E esse de fosfatase alcalina então? No laboratório disseram que nunca viram um tão alto.
─ Legal.
─ E essa ressonância magnética? Veja que inflamação mais nítida!
─ Não vejo nada.
─ Ah, mas eu aprendi com os médicos. De tanto fazer, já sei o diagnóstico. Ficam até com raiva de mim quando discuto o tratamento.
─ Discute com eles?
─ Claro! Ainda mais quando falam que têm o remédio certo pra acabar com a doença...

19.8.10

 
Bíblia


Suadas, as mãos caminham ansiosas na direção do objeto sagrado que ocupa o centro superior da estante; seu principal troféu exposto.

Sente o prazer do peso tijolar que acalma a tremedeira das mãos e da mente. A disposição do texto, com seu retilíneo rigor formal, é clara: Deus escreve certo por linhas certas. Se há algo que salva, esta coisa está ali.

O prazer tátil de passar o dedo nas letras miúdas que a vista cansada quase não lê torna-se um vício.

Com o tempo, acostumou-se tanto que seu dedo já adivinhava as vírgulas e os pontos finais. Sem ver, começou a calcular o número de capítulos por página, a quantidade de linhas de cada versículo e a sentir até um ligeiro sobressalto nos negritos. Treinado, passou a frear ao percorrer as perigosas palavras-lombadas.

Quis radicalizar e passou a entender de olhos fechados o que seu dedo lia nesse braille imaginário que absorvia tudo, a ponto de ir apagando o que tocava.

Sonha com a luz do branco total das páginas que o iluminará um dia.

 
Minifato XVI
(a realidade goleando a ficção)

Candidatos a deputado federal: Tiririca, Ronaldo Esper, Mulher Pêra...

11.8.10

 
Tópy Méloddy


Que porra de Beyoncé do Pará, que nada.
Sou mais eu. Eu e minha banda. Tá, eu minha banda e essas aí. Fazer o quê? Além de ouvir música, o povo quer mesmo é ver bunda. Muitas, de preferência.
Por mim, elas nem tavam aí. Mais três pra dividir esse cachê de fome, entupir aquele ônibus velho e rachar quarto de hotel de 5ª. E pra deixar neguinho excitado, achando que a gente topa todo tipo de programa. Teve até um imbecil que perguntou quanto eu cobrava. E o pior é que tava precisando tanto de dinheiro...

Banda Topyyy Méloddyyyyyyyy

Brilharia sozinha aqui fácil. Ainda tô inteira. É, inteira, inteira, não. Mas querem o quê? A Mulher Jaca aqui no palco? Desfile de miss? Cantar bem não basta?

O T que faz a terra TREMER!

Égua, vão pagar pra ver. Quando menos esperarem, a gente tá no topo das paradas. Vamos arrebentar aqui em São Paulo. Fazer essa paulistada rebolar bonito. Misturar maniçoba na pizza. Entuchar o McDonald’s de jambu.

O som do Pará

Cansei de ser pobre. Agora eu vou ser pop!

6.8.10

 
Hidrografia do corpo


Nascente
Atrito de corpos se navegando nos suores que se avolumam do mutualismo que percorre os córregos que escorrem a corrente dos desejos.

Afluentes
Jorro de mãos, pés, bocas, cheiros, sabores, cores, densidades e volúpias que, não cabendo nos igarapés desse leito, acham de se riachar.

Carta de navegação

Guia de sons, pelos, sentidos e gemidos que apontam o rumo a seguir, os atalhos, o caminho mais demorado (que pode não ser o pior) e a velocidade a controlar.

Bancos de areia
Percalços que tripudiam os tripulantes que somos desse barco sem leme, lema, salva-vidas ou coletes que nos protejam dos flertes com o desvio de rota.

Encontro das águas
Presença pressentida a quilômetros, sentida a metros e tida incerta até que se amazona em nós.

Foz
Você!

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